
É digno de nota que a maior parte da história dos cães foi desempenhada por relativamente pequenos e generalizados atores de quatro patas, que formaram o núcleo central da família.
Hoje, nós admiramos os lobos pela sua força, beleza, inteligência e complexidade social, mas como todos os membros atuais da família dos cães, os lobos possuem características físicas que são comuns a todos — tamanho moderado, forma sem características especiais, focinho alongado e um grande número de dentes. Os cães não possuem as especializações de caça dos gatos, que possuem garras retráteis incrivelmente flexíveis, ou a compleição dos ursos, ou a sinuosidades das lontras e civetas, ou a força das mandíbulas das hienas.
Isso não significa que todos os canídeos tenham sido sempre carnívoros medianos ou sequer “subnormais”. Antes, há mais ou menos 20 milhões de anos, desenvolveu-se um grupo de “cães-urso” gigantes que poderiam ter chegado aos 250 quilos. Mais tarde, vieram os borofagíneos, animais massivos e de face larga que se assemelhavam a hienas. Mesmo hoje, temos o dôle asiático e o cachorro vinagre (Speothos venaticus) sul-americano, cujas faces curtas e número reduzido de dentes nos recordam que há outras maneiras de se fabricar um canídeo.
Entretanto, simplicidade e economia de projeto aparentemente importavam. E de algum lugar dentre o estoque amplamente distribuído dos pequenos Canis, os lobos de hoje em dia devem ter surgido. Duas aproximações primárias para se determinar a ancestralidade são: registro fóssil e relacionamento genético. Algumas vezes essas duas metodologias discordam entre si, como por exemplo no caso da evolução humana, mas no caso dos lobos elas basicamente sustentam uma à outra: os lobos desenvolveram-se na América do Norte a partir da linha dos coiotes.
De início, os coiotes eram ainda animais muito pequenos e delicadamente proporcionados, e diferiam o suficiente dos coiotes da atualidade (Canis latrans) para serem chamados uma espécie distinta, Canis lepophagus. Os massivos cães borofagíneos estavam ainda em circulação, e provavelmente não havia chance para outros grandes canídeos. Mas então os borofagíneos se extinguiram, e os fósseis nos mostram que certas populações desses primeiros e diminutos coiotes, que viveram no Texas, começaram a desenvolver-se em tamanho, com crânios relativamente mais largos, e em mandíbulas e dentes mais poderosos. Aproximadamente um milhão de anos atrás, um grupo de animais assemelhados aos lobos se espalhou finalmente da Flórida ao Oregon. Em tamanho, proporção e aspecto dentário, eles eram praticamente idênticos ao atual lobo vermelho (Canis rufus).
Como exatamente ocorreu essa transição do pequeno coiote para a criatura vermelha lupina, e quais barreiras se desenvolveram para permitir que as linhas do lobo e do coiote pudessem seguir seus caminhos separados, nós não sabemos. Dessa fase em diante, entretanto, nós temos uma idéia melhor da evolução dos vários tipos de lobos. A distribuição moderna desses diferentes tipos, junto com o estudo dos fósseis, revelam uma história de perambulações intercontinentais, ascensão e queda de pontes de terra, e dispersão e contração de geleiras e desertos.
Provavelmente durante uma antiga era glacial, quando a água estava imobilizada em capas de gelo, permitindo a união temporária entre a Sibéria e o Alasca, os pequenos lobos do Novo Mundo dirigiram-se ao Velho Mundo e difundiram-se amplamente. Eles continuam lá, ou continuavam até há muito pouco tempo. Por toda a periferia meridional da Eurásia (na Espanha, Itália, Arábia, Egito, e até mesmo no Japão) os taxonomistas descobriram populações de canídeos de pequeno porte que diferem marcadamente em tamanho e em outras características da maioria dos lobos cinzentos, mais setentrionais, mas que já são muito grandes para serem chamados de chacais. Da mesma forma que a radiação de fundo do Big Bang, a presença dessas populações periféricas é uma lembrança da migração mundial dos lobos que teve lugar aproximadamente há um milhão de anos.
Os pequenos lobos do Velho Mundo foram divididos em algumas raças ou sub-espécies, mas apenas uma foi bem estudada. Trata-se do Canis lupus pallipes, um lobo pequeno, normalmente de cor clara, ainda encontrado em partes da Turquia e Israel, passando pelo sul do Irã até grande parte da Índia. Análises de crânios, que comparam tamanhos e proporções, mostram que o pallipes é muito proximamente relacionado com o lobo vermelho da América do Norte (Canis rufus). Esse lobo do Velho Mundo, porém, desenvolveu-se o suficiente na direção do lobo cinzento (Canis lupus) para ser considerado uma sub-espécie do mesmo. É uma demostração vivente do “onde” e do “quando” a transição entre o lobo vermelho e o cinzento teve lugar.
O pleno desenvolvimento do lobo cinzento aparentemente ocorreu mais para o norte na Eurásia, talvez como resposta aos climas gélidos de 300.000 anos atrás e à separação do pallipes por barreiras de desertos. O lobo cinzento tornou-se maior, transformou-se no formidável predador que nós conhecemos hoje e disseminou-se através da Europa e norte da Ásia. A certa altura, ele invadiu a América do Norte, que por então continuava sendo ocupada pelo pequeno progenitor da linha dos lobos. Portanto, a situação era como a de um filho forte e super-crescido retornando para impor-se sobre o seu velho pai. E pareceu que foi uma disputa fácil.
Mas havia ainda outro filho.
Enquanto o lobo cinzento se desenvolvia na Eurásia, uma certa população do Novo Mundo, designada de Canis armbrusteri, também começou a crescer. Registros fósseis bastante completos foram encontrados apenas nos estados da Flórida e Maryland, e a espécie finalmente desapareceu. Como era esse animal? Para onde ele foi?
Nossa melhor estimativa é que ele tenha se disseminado pela América do Sul, onde permaneceu isolado, e transformou-se no grande “lobo terrível” (Canis dirus). Em forma e estrutura, o armbrusteri está entre o lobo vermelho e o dirus. Dado que o dirus apareceu quase que de repente na América do Norte, já plenamente evoluído, é muito provável que tenha sido um invasor vindo de algum outro lugar. Não há nenhum indício de que o dirus jamais haja estado na Eurásia, portanto esse animal aparentemente não viajou pela ponte de terra que apareceu e desapareceu várias vezes no que é hoje o Mar de Bering. Entretanto, restos de animais assemelhados ao dirus foram encontrados na América do Sul até os pampas argentinos. Ele provavelmente dirigiu-se depois para o norte, porque a sua ocorrência mais cedo na América do Norte foi no México, e então há mais ou menos 100.000 anos ele aparece em abundância de costa a costa nesse continente.
Algumas populações do Canis dirus continham os maiores membros da família dos cães que já existiram; outros não eram maiores do que um lobo cinzento dos grandes, embora eles tivessem cabeças relativamente mais amplas e dentes enormes. Em que pese o fato de que algumas vezes ele tenha sido pintado em publicações populares como um animal desastrado e até mesmo estúpido, o dirus era uma espécie altamente evoluída, bem adaptada para a vida entre tigres-dente-de-sabre, leões, preguiças gigantes, mamutes, cavalos, camelos e outros animais de grande porte que ocupavam a América do Norte naquela época. Ele poderia ainda estar lá, não fosse o fato de que muito das suas presas tivessem sido exterminadas pelo avanço de caçadores humanos que penetraram na América do Norte seguindo a retirada das últimas glaciações do Pleistoceno, há aproximadamente 10.000 anos.
A presença do dirus não impediu que o lobo cinzento entrasse na América do Norte (na verdade, o cinzento provavelmente chegou primeiro), mas aonde os dois ocorreram ao mesmo tempo, houve uma tendência a que os lobos cinzentos se tornassem menores, o que ajudou a evitar competição ecológica. O menor crânio de um lobo cinzento norte-americano já registrado foi encontrado numa caverna no nordeste do México, em meio a vários crânios enormes do dirus. Além disso, nos poços de piche do Rancho La Brea (Califórnia), famosos pelas suas centenas de esqueletos de Canis dirus e deoutros animais pré-históricos, há alguns crânios de lobos cinzentos pequenos.
O Rancho La Brea forneceu mais algumas espécies de outro tipo de lobo cinzento, massivo, de crânio amplo e grandes dentes. Alguns dos primeiros taxonomistas pensaram que esse animal era uma forma do dirus, mas ele na verdade parece ser de um parente próximo dos lobos cinzentos que vivem hoje nas ilhas árticas do Canadá e no norte da Sibéria. Possivelmente uma população de tais animais foi impelida ao sul pelo surgimento de capas de gelo sobre as Sierras há uns 100.000 anos, e conseguiu ocupar a Califórnia depois que os dirus se retiraram de volta ao México.
A presença de dois tipos bastante distintos de lobos cinzentos no Rancho La Brea é um indício de que houve na verdade várias invasões da América do Norte pela espécie, separadas por períodos de clima relativamente quente quando os níveis dos mares estavam elevados e as pontes de terra submersas. Nós sabemos hoje que houve vários avanços e contrações das capas de gelo, e não apenas quatro como se acreditava até há algum tempo.
Os lobos cinzentos da América do Norte parecem ser mais diferenciados do que aqueles da Eurásia. Algumas autoridades do campo ainda reconhecem cerca de 24 sub-espécies do Canis lupus no Novo Mundo, mas apenas 12 ou menos no Velho Mundo. Há contudo um consenso crescente de que apenas algumas dessas raças são realmente válidas. Porém, é verdade que os lobos cinzentos típicos da América do Norte são encontrados na periferia da zona de distribuição dessas espécies, mais distantes da massa de terra eurasiana, e portanto provavelmente são os remanescentes das primeiras migrações. Essas sub-espécies são o pequeno baileyi (lobo mexicano), o lycaon do sudeste canadense e o arctos das ilhas árticas.
Na maior parte do oeste dos Estados Unidos, ao longo da costa do Pacífico até o sudeste do Alasca, na região ocidental dos Grandes Lagos, no nordeste do Canadá e ao redor da Baía de Hudson, historicamente viveram populações de lobos cinzentos de médio porte que geralmente assemelham-se uns aos outros e também aos lobos cinzentos da maior parte da Europa e do norte da Eurásia. Todas essas populações aparentemente proximamente relacionadas são claramente o resultado de uma migração intercontinental do lobo cinzento depois que ele desenvolveu as suas características típicas.
Uma outra fase na evolução do lobo cinzento ainda estava por vir. Na América do Norte, os lobos da maior parte do Alasca e do oeste do Canadá são muito semelhantes entre si. Eles provavelmente são todos uma única sub-espécie, cujos membros são os maiores dos lobos cinzentos modernos. Sabemos que, quando as geleiras cobriam a maior parte da América do Norte, a região do Alasca estava em grande parte poupada do gelo e servia de refúgio para muitos tipos de animais. Evidentemente foi lá que esta sub-espécies de lobos cinzentos enormes se desenvolveu. Quando o gelo retornou, pela última vez há aproximadamente 10.000 anos, esta raça foi impelida para o canto noroeste do continente. Grandes lobos proximamente relacionados adernaram para a Sibéria, chegando até os Urais, e pela costa do Pacífico abaixo, atingindo as ilhas Sakalinas (Rússia) e Hokkaido (Japão).
É tentador romancear que, à medida em que os lobos cinzentos dirigiram-se ao sul, encontraram-se com o dirus, e que alcatéias dos dois gigantes lutaram pelo domínio da América do Norte. Contudo, devido às suas diferentes adaptações climáticas, é improvável que os dois sequer tenham se visto alguma vez. Além disso, um outro predador muito mais temível provavelmente já havia eliminado o dirus e em breve estaria grassando as populações do cinzento e do vermelho. A fase terminal da evolução do lobo era talvez iminente.
Ron Nowak, do U.S. Fish and Wildlife Service, esteve envolvido na conservação e taxonomia do lobo vermelho por 30 anos. Sua tese de doutorado é sobre a taxonomia do gênero Canis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário